Notícias: RELAÇÕES DIPLOMÁTICAS - Erosão na parceria entre China e a cooperação Sul Global
Por: Wilson - 04/05/2020 - 20:33:28

No campo da governança global, ser um player relevante faz toda a diferença no momento de disputas no campo comercial. O Brasil conquistou esse espaço em poucos momentos de sua política exterior. Com efeito, a política externa e o tipo de inserção internacional pretendida estão intrinsecamente articulados com a política econômica e o interesse nacional1.

A política externa brasileira (PEB) sempre foi matizada por visões condicionadas ao tipo de inserção internacional buscada por diferentes governos e ao contexto internacional do momento e nesse sentido foi graduada por visões de autonomia decisória, soberania e internacionalização econômica nos períodos de 1930 a 1989 e 2002 a 2014 e de adesão aos cânones neoliberais e alinhamento automático com os EUA nos períodos de 1990 a 2002 e de 2018 até o presente2.

Nos períodos em que defendeu uma projeção mais autônoma e ativa na política internacional e atuou para modificar os regimes internacionais em favor dos países do Sul e do próprio país, particularmente no período petista à frente do Poder Executivo, o Brasil construiu uma aliança importante com os países do Sul Global alicerçada em uma autossuficiência coletiva e ganhos mútuos e num modelo de relações internacionais fundado na cooperação político-diplomática, econômica-comercial e científico-acadêmica.

Importante remarcar que esse giro solidário para o Sul coincidiu com o revigoramento da cooperação Sul-Sul (CSS), contudo não está isento de críticas. Em que pese os princípios altruístas que norteiam essa cooperação, o debate atual aponta que a atuação dos países emergentes pode continuar condicionada às estruturas hegemônicas de poder mediadas por interesses econômicos e comerciais.

Neste quadrante, o Brasil adensou seus laços com a China – um dos países que despontavam como potências emergentes na década de 2000 – por meio do incremento das relações comerciais no campo bilateral e da solidificação das relações político-econômicas com a formação dos BRICS, para citar somente dois campos.

 

China

Com uma relação diplomática iniciada no início do século XX, rompida pelo Brasil em 1949 com a fundação da República Popular da China, sob regime comunista, em razão do alinhamento do governo brasileiro aos EUA no âmbito da Guerra Fria, o Brasil inicia uma reaproximação em 1961 com João Goulart dessa vez interrompida pelo o Golpe Civil-Militar de 1964 no Brasil. Em 1971, a China é aceita como Estado-membro da ONU, integrando, inclusive, seu Conselho de Segurança. Em 1974, as relações diplomáticas são reatadas pelos dois países, nas décadas seguintes as relações comerciais foram estabelecidas e incrementadas no início do novo século.

Essa aliança foi matizada pelos interesses nacionais de ganho geoestratégico político, econômico e internacional de ambos os países, mas nem sempre foi simétrica em razão da aspiração hegemônica chinesa materializada em seu poderio econômico.

A cooperação da China com países do Sul é lastreada na integração de ajuda, investimento e comércio como instrumento para realização de seus próprios objetivos, particularmente de exportação de seus produtos manufaturados e seu excesso de capacidade3. A ajuda é vinculada e orientada ainda em razão do interesse do país por terra, energia e matérias-primas.

Commodities

No caso brasileiro, dentre outros fatores, a dependência da exportação de commodities para a China levou o país a um período de bonança econômica em plena crise de 2008, mas também foi tributário do declínio econômico sofrido na década de 2010 quando a economia chinesa se retraiu e diminuíram as exportações4. No âmbito comercial, há um benefício mútuo na parceria entre os dois países – segundo dados da Fundação Getúlio Vargas, a China é responsável por 27,8% da exportação brasileira (duas vezes superior a dos EUA), e 20,0% das importações (também superior aos EUA). Em 2004 os dois países criaram a Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação no âmbito da qual aprovaram um plano decenal de cooperação 2012-2021 em áreas prioritárias e os projetos-chaves em ciência e tecnologia e inovação; cooperação econômica e comercial, minas e energia, cultura e educação.

A globalização que desterritorializou as indústrias nacionais, encontrou na China, com a precariedade das relações de trabalho, o espaço ideal para o renascimento de uma indústria manufatureira global que situa o país como a maior economia de exportação do mundo.
O que isso tem a ver com a pandemia da Covid-19? Tudo. Porque um dos campos de batalha na guerra contra a pandemia é o comercial. Na atualidade a China é o país que lidera a produção de produtos e insumos médicos, hospitalares e sanitários para o combate à pandemia. Em um cenário de muita demanda e pouca oferta, uma parceria estratégica com a China facilita a cooperação comercial.

Contudo, todo o capital político advindo da cooperação construído pelos governos Lula e Dilma entre 2002 e 2014 com o governo chinês vem sendo destruído pelo governo Bolsonaro.

Em que pese a China ainda ser o principal parceiro comercial do Brasil, uma PEB orientada pelo alinhamento automático atrapalhado do Brasil aos interesses geopolíticos dos EUA, em detrimento dos interesses nacionais, materializada a saber: em acordos como de Pesquisa, Desenvolvimento, Teste e Avaliação, de Salvaguardas Tecnológicas e refratário à implantação do sistema 5G no Brasil; pela desarticulação de uma parceria fundada na cooperação político-diplomática, econômica-comercial e científico-acadêmica (enfraquecimento dos BRICS, desmobilização da cooperação Sul-Sul, perfil baixo junto a UNCTAD (sigla em inglês para a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento); perda de poder na Organização Mundial do Comércio); iv. presidencialismo diplomático errante iniciado ainda na campanha presidencial quando o então candidato Bolsonaro visitou Taiwan — considerada pelos chineses como uma província rebelde — e afirmou que a China estava “comprando o Brasil”;. agravada pelos insultos xenófobos e racistas de autoridades do alto escalão do governo brasileiro contra o governo chinês durante a pandemia da Covid 19 – algo jamais visto na PEB; pode levar o Brasil a um lugar de insignificância na aliança Sul-Sul e particularmente friccionar ainda mais as relações bilaterais com a China.

Provocações

O último episódio de provocação contra o governo chinês ocorreu em meio à pandemia quando o deputado federal Eduardo Bolsonaro e o Ministro da Educação Abraham Weintraub fizeram postagens consideradas xenófobas e racistas pelo governo de Pequim. O governo chinês exigiu uma retratação do governo brasileiro que demorou para acontecer, mas não sem antes o Ministro das Relações Exteriores brasileiro criticar a diplomacia chinesa pela forma como tratou o episódio.

Tendo este cenário como pano de fundo, nas últimas semanas temos acompanhado nos discursos de autoridades públicas e nas notícias dos meios de comunicação os processos de cancelamento de compras, descumprimentos contratuais, imposição de condicionalidades para as compras feitas por entidades governamentais e privadas brasileiras de produtos e insumos que na quadra atual têm sua produção hegemonizada pelo mercado chinês.

Por outro lado, motivado por solidariedade e interesse geoestratégico (vide acordo comercial recentemente assinado entre China e EUA), o que já vem sendo denominado de “diplomacia da máscara”, nas últimas semanas temos visto governo e empresas chinesas dando preferência a compras feitas pelos países do Norte, particularmente os EUA e os europeus (também mais assolados pela pandemia) e esses mesmos países sendo beneficiados por doações de produtos e insumos hospitalares e sendo recipiendários de cooperação técnica nas áreas médica e científica. No âmbito da cooperação Sul-Sul a China também tem sido um dos maiores doadores de produtos e insumos para o combate à Covid 19 para os países pobres e em desenvolvimento assolados pela pandemia, particularmente para os países africanos com quem mantém vários acordos de parceria estratégica.

Num momento de crise internacional como o atual, manter boas relações comerciais com a China é desejável para assegurar as exportações brasileiras, mas sobretudo para ter acesso a equipamentos e insumos médicos produzidos pela indústria chinesa e mitigar os efeitos da pandemia.

Acordos comerciais no marco da cooperação entre os dois países poderiam se beneficiar de preços mais competitivos, certeza de entrega, rapidez na logística de transporte.

Uma aposta no fortalecimento dessa aliança poderia ainda ativar a solidariedade que marca as relações Sul-Sul e contar com a cooperação chinesa no apoio para o desenho e implementação de uma política pública eficaz no combate à Covid 19.

O Brasil também poderia se favorecer das doações de produtos hospitalares e insumos para pesquisa e testagem, assim como da cooperação técnica entre médicos e pesquisadores chineses e brasileiros para o encontro da vacina, tendo em vista a expertise chinesa em razão de ter sido o primeiro país a sofrer e a superar a Covid 19. Aqui vale remarcar que o Brasil possui uma geração de cientistas e pesquisadores sanitaristas respeitados mundialmente, institutos de vacinas e fármacos reconhecidos pelo desenvolvimento de vacinas para doenças tropicais, com trabalho de cooperação relevante desenvolvido nos países do Sul global e cujas pesquisas também podem beneficiar os chineses. Com efeito, na pandemia, a Fundação Osvaldo Cruz (FIOCRUZ) foi designada pela OMS como um dos laboratórios de referência em coronavírus para as Américas.

Vale frisar que o país estaria em um pior cenário se não tivesse ocorrido o que chamo aqui de “federalismo de combate” onde os Estados e Municípios em razão da omissão do governo federal, e no marco da cooperação subnacional ou descentralizada, pautados no interesse público de evitar uma catástrofe da saúde em seus Estados e municípios, estabeleceram negociações diretas com o governo e empresas chineses para a compra de produtos e insumos. Ainda assim, essa iniciativa tem sido menoscabada pela ausência de uma diplomacia altiva que possa intermediar e talvez até prevenir os revezes que têm ocorrido com a exorbitância valores e formas contratuais e prazos de entrega.

Vários gestores estaduais têm relatados casos de cancelamentos de compras, condicionalidades, falta de logística de transporte para envio das cargas, confisco e desvio de compras em conexões internacionais. Tudo isso inclusive levou a que recentemente o governador do Maranhão realizasse uma verdadeira “operação de guerra” para assegurar que respiradores e máscaras comprados da China chegassem ao seu Estado e não correr o risco de tê-los desviados nem pelo governo estadunidense que já havia interceptado uma compra dos governos maranhense e baiano, nem governo brasileiro que também bloqueou uma compra maranhense!

Este “federalismo de combate” materializado pela interlocução e cooperação direta de governadores e prefeitos, mas também do Consórcio Nordeste, com o governo e empresas privadas chineses, sem a coordenação do governo federal, está dando novo ímpeto a cooperação descentralizada que deverá ser objeto de maior análise no futuro.

Sem querer aqui minimizar ou anular a responsabilidade das elites brasileiras em um eventual cenário de colapso do sistema de saúde para fazer frente a Covid 19 (desmonte do SUS, aprovação da EC Nª 95 de 2016 sobre Teto de Gastos, desmonte da indústria nacional, dentre outros), o fracasso em superar a crise e salvar a vida de brasileiras e brasileiros também será tributário das escolhas feitas pelo Presidente Jair Bolsonaro: pelos ataques racistas do seu alto escalão dirigidos ao governo e povo chinês, pela sua orientação de retração e obstrução das alianças e cooperação com o Sul Global, pelo abandono do multilateralismo com uma adesão cega aos EUA que, inclusive, acabaram de dar um duro golpe na OMS, pela subserviência internacional e particularmente pela inépcia na coordenação das relações com a China.

 

1 Quero agradecer as contribuições feitas pela colega pesquisadora e doutoranda da UnB, Marina Caixeta.

2 CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoldo. História da Política Exterior do Brasil. 4 ed. Ver. Ampl. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2011; CERVO, Amado Luiz; LESSA, Antônio Carlos. O declínio: inserção internacional do Brasil (2011–2014). Rev. Bras. Polít. Int. 57 (2), 133-151. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7329201400308. Acesso em: 10 Mai 2014; SANTOS, Maria do Carmo Rebouças da Cruz Ferreira dos. A cooperação Sul – Sul (CSS) para a reorientação dos imaginários e práticas do desenvolvimento: os caminhos da cooperação entre Guiné Bissau e Brasil. (tese). Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional do Centro de Estudos Avançados e Multidisciplinares da Universidade de Brasília, UNB, 2017.

3 ZHENG, Yu. China’s Aid and Investment in Africa: A Viable Solution to International Development? Fudan University, 2016.

4 SANTOS, Maria do Carmo Rebouças. Guiné-Bissau da independência colonial à dependência da cooperação internacional para o desenvolvimento. Rio de Janeiro: Gramma, 2019.

Maria do Carmo Rebouças dos Santos é doutora em Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional pela Universidade de Brasília. Professora de Direito da Universidade Federal do Sul da Bahia. Autora do livro Guiné-Bissau da independência colonial à dependência da cooperação internacional para o desenvolvimento. Colaboradora Associada do Centro de Estudos e Articulação da Cooperação Sul Sul, membra da Latin American Studies Association – LASA. Possui experiência na área internacional do desenvolvimento e dos direitos humanos tendo coordenado diversos projetos de cooperação Sul-Sul em direitos humanos entre Brasil, a África e a América Latina. Foi advogada da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, em Washington DC.




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