Notícias: Mulheres compartilham histórias de preconceito e ativismo em encontro da Ajuris (Autor: Fernanda Canofre).
Por: Wilson - 19/03/2017 - 22:20:22

Uma mulher negra conhece preconceito dentro de seu próprio movimento, que não lhe dá espaço de fala.

Uma mulher com problema de peso conhece preconceito no salão de beleza, onde ninguém quer se sentar ao lado dela e a analisam de cima a baixo. Uma mulher trabalhadora conhece preconceito na escrita das leis que, historicamente, não a incluem. Uma mulher trans conhece o preconceito de outras mulheres cisgênero que não aceitam inteiramente sua experiência como mulher.

Essas foram algumas das histórias compartilhadas na mesa “Mulheres x Preconceito” promovida pela Associação de Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), como forma de marcar os debates do mês da mulher, nesta quinta-feira (16). A instituição convidou para compartilhar suas experiências a youtuber Ana De Césaro, que ganhou fama ao promover um projeto de emagrecimento saudável na internet, de Denise Dora, ouvidora-geral da Defensoria Pública do Estado e presidente da Themis, Maria Conceição Fontoura, doutora em Educação e integrante da ONG Maria Mulher, e Adriana Souza, coordenadora estadual da Diversidade Sexual na Secretaria de Desenvolvimento Social, Justiça e Direitos Humanos do RS.

Adriana é uma mulher trans, negra e professora de escolas públicas no Rio Grande do Sul. Ela foi a primeira mulher trans do Estado a ser eleita diretora de uma escola. Dentro do quadro da educação, conhece a discriminação com mulheres como ela, mais do que ninguém. Algo que sofreu na pele e ainda acompanha jovens enfrentando todos os dias.

Adriana falou sobre a realidade de mulheres trans que não encontram oportunidades e acolhimento | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Uma história que ela diz gostar de citar é de uma menina trans de 13 anos que, depois de se identificar como mulher, foi rejeitada pela mãe evangélica, pelo pai e acabou na prostituição. “Estou com quatro meninas trans no WhatsApp pedindo: ‘Adriana, por favor, me arranja um emprego, não aguento mais essa vida’”, conta ela. Segundo Adriana, depois de entrar em contato com várias escolas, pedindo por alguma que tivesse “condições mínimas” para que elas estudassem, sem preconceito ou violência, a resposta que ouviu foi que nenhuma poderia garantir isso.

Pior: de acordo com Adriana, apenas três redes de supermercado se propõem a contratar pessoas trans com educação fundamental no Estado. Para pessoas trans com formação superior, há algumas empresas de tecnologia. Mas é só.

A professora lembrou ainda do debate que tem tomado conta de muitas correntes feministas, que avaliam que mulheres trans, por terem vivido parte da vida como homens na sociedade e terem acessado os privilégios reservados a eles, não poderiam saber sobre os preconceitos que cercam mulheres desde cedo. “Isso que elas veem como privilégio, pode ser um privilégio, mas é o privilégio de um sofrimento. Eu nunca estive confortável nessa situação [de estar num corpo masculino]”, diz ela.

Já Maria da Conceição Fontoura, feminista negra, lembrou outra dissonância com o movimento feminista composto em sua maioria por mulheres brancas. Ela foi uma das fundadoras da ONG Maria Mulher, a primeira organização a juntar feminismo e movimento negro no país. Segundo ela, enquanto mulheres brancas falavam em “igualdade de salários”, as mulheres negras chegaram ao Brasil sendo obrigadas a trabalhar, escravizadas, algo sem reparação nas leis ou políticas públicas do país.

Maria da Conceição foi uma das criadoras da ONG Maria Mulher, uma das pioneiras no país a unir feminismo e movimento negro | Foto: Guilherme Santos/Sul21

“A discriminação é diferente do preconceito. O preconceito é um sentimento sobre o qual eu não posso atuar. A discriminação vai além disso”, explicou Maria da Conceição. “A ideia da discriminação é de que há sujeitos que são pessoas e outros que são menos pessoas”.

Conceição contou ainda que o preconceito existia também dentro de seu próprio movimento, um dos pioneiros no Brasil a propor o 20 de novembro como dia nacional da Consciência Negra. Geralmente, as mulheres que ajudavam a organizar os eventos, eram deixadas de fora da hora de falas – dominadas pelos homens.

A youtuber Ana De Césaro contou sua experiência como uma mulher que cresceu sofrendo preconceito por não se encaixar nos padrões do como a sociedade achava que uma mulher deveria agir, por ter lutado contra o peso boa parte da adolescência e como vítima de violência sexual. “Qualquer pessoa pode achar que não vale mais a pena viver por causa do preconceito. Se tu é obesa, vê as pessoas não quererem ficar mais ao teu lado. Eu não ia mais ao salão de beleza porque as pessoas me olhavam estranho”, lembrou ela.

Ana falou sobre o preconceito que enfrentou ao revelar que havia sofrido um estupro e que era feminista | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Ana contou ainda que perdeu o número de inscritos no seu canal do YouTube depois de gravar um vídeo onde contava que havia sido estuprada e que era feminista. Ela diz que demorou quatro anos para conseguir contar o que aconteceu para a própria mãe. “Eu tive a sensação de virar uma estatística. Fui estuprada dentro da minha casa, por um homem que me drogou e não denunciei por medo”, diz ela.

Foi assim que viu que fazia parte do grande número de mulheres que não conseguiam falar sobre isso. “Eu estou ali [nestes números] e entendi porque as feministas lutam tanto. A culpa não era minha, do que eu estava usando, do meu peso, era do cara”.

Para a defensora Denise Dora, no momento em que há um retrocesso em leis que garantem direitos às mulheres, a aliança entre a sociedade civil e os operadores do Direito é ainda mais importante.

“Tem muitas coisas que a gente pode mudar. As feministas podem educar seus filhos de forma diferente, podem se posicionar eticamente na sociedade de forma diferente, podem ser mais solidárias com outras mulheres, mas obviamente, o movimento feminista precisa de aliados para alterar leis. Precisa da Defensoria Pública, precisa do Estado”, explica ela.

Aplicativo da Themis já está sendo utilizado por mulheres na Restinga | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Novas tecnologias como aliadas contra violência contra mulher

Junto com o debate na Ajuris, a Themis lançou sua segunda revista, com título: “Novas tecnologias sociais no enfrentamento à violência contra a mulher”. A revista traz artigos de especialistas e de promotoras populares, que trabalham diretamente com mulheres vítimas de violência domésticas nas periferias de Porto Alegre, lembrando os 10 anos da Lei Maria da Penha.

Há pouco mais de um ano, a organização conseguiu materializar o encontro entre tecnologias e enfrentamento à violência de gênero em um aplicativo de celular. O PLP 2.0 foi desenvolvido pela Themis graças a um prêmio concedido pelo Google, em 2014. O programa, baixado em celulares, funciona como uma espécie de “botão do pânico”. Com ele, mulheres que têm medidas protetivas de urgência podem acionar diretamente a polícia militar. O aplicativo permite que a Brigada possa seguir a localização da mulher, se ela estiver em rota de fuga do agressor, e a conecta com a Secretaria de Segurança Pública. A página que abre na página da Brigada já apresenta a medida protetiva e quem é a mulher que está pedindo ajuda.

“Isso agiliza a ação da polícia. Após toda essa ação do Estado, há a ação das promotoras legais populares que, depois que toda a situação está resolvida, vão acompanhar no sentido de orientar ela sobre que órgãos ela pode procurar. Por exemplo, se ela é ameaçada, orientar que tem de fazer um boletim de ocorrência, se está numa situação de vulnerabilidade, orientar onde pode procurar ajuda. Na verdade, o trabalho das promotoras é preventivo”, explica Lívia Zanatta, assessora jurídica da Themis.

O aplicativo tem pouco mais de um ano de funcionamento. Por enquanto, está sendo testado apenas na Restinga, em Porto Alegre, com 9 mulheres que estão sob proteção. A ideia é expandir a experiência em breve para outros bairros, como a Vila Cruzeiro, onde a Themis já tem contatos de promotoras populares que poderiam ajudar na implementação. As assessoras da ONG acreditam que quanto mais pessoas estiverem utilizando o app, mais fácil ficaria de detectar erros e poder consertá-los.

Apesar de estar disponível em lojas de aplicativos e poder ser baixado em qualquer celular, o app da Themis só funciona com um código que é concedido a mulheres com medidas protetivas pelo juizado especializado. Uma versão alternativa – o app “civil”, como chamam as assessoras da ONG – está disponível apenas para celulares com sistema iOS. Nele, qualquer mulher pode acionar ajuda de uma rede personalizada, com amigos do Facebook ou de sua lista de telefone, quando se sentir em perigo.

“A gente está nesse mundo de tecnologia, então precisamos criar instrumentos que potencializem as políticas públicas”, diz Lívia.




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